terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Intervenção do Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, Miguel Poiares Maduro, em Cascais

«Prezados representantes do “The Economist”,

Senhor Presidente da Câmara Municipal de Cascais,

Senhoras Embaixadoras e Senhores Embaixadores,

Ilustres Convidados e Participantes,

Os Portugueses, depois de um longo período de ditadura, sempre identificaram a Europa com uma garantia de democracia e bem-estar. Ser parte da Europa era ser parte também da qualidade e nível de vida que lhe estavam associados. É por esta razão que Portugal sempre foi um país entusiasta da integração europeia e onde o ceticismo anti-europeu não teve qualquer sucesso.

Hoje isso mudou. As razões imediatas dessa mudança estão na grave crise que afectou o país e a Europa. Mas as razões profundas estão quer no erro em que caímos quanto à nossa forma de entender as oportunidades que a Europa nos ofereceu quer no erro em que caiu a própria Europa quanto à compreensão de si própria.

Quero explicar-vos isto brevemente falando quer de Portugal quer da Europa. De Portugal, falar-vos-ei de como a utilização dos fundos europeus é um bom exemplo do que de bom e mau fizemos com as oportunidades que nos foram oferecidas pela integração europeia. Da Europa, falar-vos-ei de como o seu papel tem de ser redefinido precisamente à luz da necessidade de dar resposta a algumas fraquezas das democracias nacionais num mundo interdependente e globalizado.

Portugal, e isto pode surpreender alguns, é um dos Estados com melhor reputação na execução e controle dos fundos europeus. Somos um dos dois únicos Estados Europeus que beneficia de um contrato de confiança da União Europeia. Somos o único Estado que nunca teve de devolver fundos. E somos, neste momento, o Estado com a mais elevada taxa de execução da União Europeia. Isto diz-nos que ao nível dos processos de controlo administrativo e financeiro temos uma administração credível e de qualidade.

E, no entanto, apesar destas mais-valias, após décadas a receber fundos europeus o país não conseguiu fazer as reformas de fundo que necessitava e começou até a perder competitividade. No início da década de 2000 voltou a divergir da Europa.

A razão tem de ser encontrada na forma como esses fundos foram utilizados: não apenas as prioridades a que foram destinados mas também a forma e condições com que foram atribuídos. Os fundos melhoraram e muito as nossas infra-estruturas (hoje acima da média europeia) mas não transformaram a nossa economia. Frequentemente, os fundos alimentaram a velha economia em vez de a transformar.

Temos hoje um diagnóstico quanto ao que correu mal. A selectividade foi insuficiente. A avaliação inconsequente e centrada na execução dos projectos e não nos resultados que estes atingiam. Houve pouca coordenação de investimentos e uma insuficiente integração de políticas públicas. Somos um dos países mais centralizados da Europa e quando descentralizamos fazemo-lo sem assegurar os mecanismos apropriados de avaliação e responsabilização.

Em geral, a atribuição dos fundos foi vítima de alguma excessiva burocracia mas também insuficiente transparência. Isto traduz-se em assimetrias de informação que excluíram muitos potenciais candidatos.

Talvez em termos ainda mais fundamentais, possamos afirmar que o grande problema na nossa utilização dos fundos foi a pouca preocupação com as estruturas de incentivos criadas pelas políticas públicas suportadas pelos fundos e a forma como estes eram atribuídos.

É isso que iremos mudar. Os fundos não podem ser vistos apenas como a principal fonte de financiamento para investimento nas políticas públicas. Eles são um instrumento de mudança dessas políticas públicas.

É por isso que não nos limitamos a estabelecer uma nova prioridade, a competitividade e internacionalização da nossa Economia, e promovemos uma mudança profunda de filosofia na forma como os fundos serão atribuídos e utilizados.

Para mudar a nossa economia e o nosso Estado temos de mudar as culturas institucionais dos agentes públicos e privados. Os fundos devem gerar os incentivos adequados a essa mudança.

Um exemplo: os apoios à formação profissional devem, em parte, depender do sucesso que os formandos vierem a ter no mercado de trabalho. Isto fará com que as empresas de formação profissional concebam os seus cursos atendendo à procura do mercado mas também que reforcem a sua qualidade e até promovam políticas activas de colocação dos seus formandos no mercado de trabalho.

A aposta nos apoios reembolsáveis é parte desta mesma filosofia, tal como o é a avaliação que será feita das diferentes políticas públicas apoiadas pelos fundos, reforçando as que tiverem mais sucesso e penalizando as outras. Tudo isto faz parte de uma lógica global em que deixaremos de simplesmente financiar projectos para passar a contratualizar resultados.

Como tenho repetido com insistência: não deve ser o financiamento do Estado a estar na origem dos projectos, devem ser os bons projectos a justificar o financiamento.

O sucesso e insucesso de Portugal na utilização passada dos fundos europeus é um bom exemplo do próprio sucesso e insucesso da União Europeia. Em boa medida, o sucesso da União Europeia depende da forma como interagir com as democracias nacionais. Se conseguir potenciar o melhor que estas têm, promover as suas reformas onde necessário, e supri-las onde estas já não conseguem ser eficazes, a União Europeia encontrará uma base forte para justificar a sua existência e o reforço dos seus poderes. Se não o conseguir fazer, será cada vez mais entendida apenas como um limite às democracias nacionais.

É perante este dilema que a Europa se enfrenta e é isto que explica boa parte da dificuldade em lidar com esta crise. As causas económicas da crise estão amplamente dissecadas. O que não é costume é compreender a presente crise como uma crise que radica em falhas dos sistemas democráticos nacionais europeus.

Esta é uma crise em que os problemas económicos têm a sua origem em problemas das democracias nacionais. Na incapacidade destas em lidarem com certos desafios, no impacto que as políticas erradas de alguns Estados têm noutros Estados e na incapacidade de cada Estado isoladamente lhe dar resposta. Por outras palavras, esta é uma crise em que, de formas diferentes, os limites da democracia nacional, num contexto de crescente interdependência, foram expostos.

Isto oferece uma oportunidade à Europa para se justificar perante os cidadãos corrigindo algumas dessas falhas e fraquezas democráticas nacionais. A Europa tem aproveitado esta oportunidade apenas em parte. A constitucionalização europeia da disciplina orçamental pode ser vista como uma forma de corrigir uma dessas falhas das democracias nacionais. Não apenas ela garante que os interesses democráticos das gerações futuras são atendidos no processo democrático de hoje mas também que as decisões democráticas de um Estado não podem ignorar os interesses de outros Estados, que sofrerão as consequências dessas mesmas decisões numa União Monetária.

No entanto, a disciplina orçamental, por si só, é insuficiente para enfrentar a presente crise europeia. Por razões económicas e democráticas.

Uma União Monetária requer, também, capacidade orçamental própria, ainda que limitada à correção das assimetrias que emergem numa união monetária. Um regime exclusivamente baseado na disciplina orçamental, a ser garantida pela UE, minaria a legitimidade política e social, já limitada da União.

Ou os processos políticos nacionais preservariam a sua autonomia (e a eficácia das regras seria posta em questão), ou a disciplina das políticas nacionais, por um espaço não político, poria a democracia em questão.

À luz do discurso dominante sobre a crise, pode parecer a muitos que a nossa escolha é entre uma União ancorada, exclusivamente, na disciplina (o que, mais cedo ou mais tarde, entraria num conflito destrutivo com as democracias nacionais); ou uma União prisioneira de uma negociação permanente entre essas democracias nacionais, num quadro intergovernamental que é cada vez mais incapaz de fornecer governação eficaz e legítima.

Há uma alternativa.

Qualquer resposta à crise actual tem de responder aos problemas económicos da Europa, de modo a distribuir, de forma justa os custos dos processo de ajustamento e legitimando politicamente os novos poderes que a crise confere à Europa.

1. Precisamos de autoridade política. Qualquer modelo bem-sucedido de governação terá de tornar claro que há autoridade política por detrás do Euro e da UE. Parte do problema democrático da Europa está na sua (in)capacidade de governar. Não existe democracia sem auto-governo e este pressupõe a capacidade de governar.

2. Precisamos de melhores mecanismos de aferição da responsabilidade política (“accountability”). O discurso público num quadro de uma autoridade política difusa permite que tudo e o seu contrário sejam ditos em matéria de atribuição de responsabilidades.

3. Precisamos de reestabelecer a confiança mútua entre os Estados e entre os cidadãos. A confiança foi severamente afectada pela crise. Alguns Estados Membros e os seus cidadãos acreditam que estão a pagar pelos erros e, até, pela fraude dos outros. Nestes últimos acredita-se que são os primeiros que não mostram solidariedade suficiente e estão, em vez disso, a exercer uma forma de punição colectiva.

Precisamos que, tanto as regras, como a coordenação e a solidariedade, sejam compreendidas por todos os cidadãos como sendo justificadas pelos bens colectivos por todos partilhados.

4. Precisamos de tornar visíveis para os cidadãos, tanto os benefícios como as consequências democráticas da interdependência. A fonte real de comunicação entre uma autoridade política e os cidadãos faz-se através das políticas que a primeira põe em prática e pelo modo como estas têm impacto e são percebidas pelos cidadãos. Os benefícios e os custos da União Europeia só serão adequadamente assumidos pelos cidadãos, se forem inerentes ao carácter das políticas europeias, incluindo nestas as suas receitas.

5. Precisamos de legitimar a solidariedade financeira, relacionando-a com a riqueza gerada pela integração europeia e não com a riqueza de alguns Estados. Precisamos de separar a solidariedade das transferências financeiras entre Estados. A solidariedade deve ser produto da riqueza que o próprio processo de integração europeia gera e ser conduzida pelo ideal de uma distribuição equitativa dos benefícios dessa integração entre todos os cidadãos europeus.

6. Precisamos de integração política, para legitimar a transferência acrescida de poderes para União e a solidariedade financeira. O ponto de partida para esta integração política tem de ser um espaço político europeu.

Os efeitos desta mudança de paradigma para a política na UE seriam profundos. Numa Europa democrática, os cidadãos podem discordar sobre as políticas preconizadas para responder à presente crise económica e financeira. Se esta discordância assentar apenas nas fronteiras nacionais ela vai acabar por destruir a integração europeia. A verdade é que se os cidadãos sentirem que não podem discutir na Europa políticas europeias alternativas, então, a única alternativa que lhes resta é ser contra ou a favor da Europa.

Qualquer forma de integração política apenas baseada nos espaços políticos nacionais será minada pela desconfiança entre esses espaços e não terá a autoridade política clara necessária à eficácia de Governo nem a capacidade para internalizar as consequências democráticas da interdependência.

É este último ponto que é fundamentalmente assegurar, tanto na Europa como Portugal. Assumir as consequências dum contexto de profunda interdependência como aquele em que vivemos.

É isso que temos vindo a fazer em Portugal. É a credibilidade com que o temos vindo a fazer que também nos coloca em posição de exigir o mesmo à União Europeia.

Muito obrigado.»

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